Wednesday, January 10, 2007

O mito de sisífo




Os deuses condenaram Sísifo a incessantemente rolar uma rocha até o topo de uma montanha, de onde a pedra voltaria a cair devido ao seu próprio peso.
As opiniões diferem quanto às razões pelas quais ele se tornou o inútil trabalhador dos infernos.
Para começar, ele é acusado de uma certa frivolidade a respeito dos deuses. Ele roubou os seus segredos. Egina, a filha de Esopo, foi raptada por Júpiter. O pai ficou chocado com aquele desaparecimento e queixou-se a Sísifo.
Ele, que sabia do sequestro, ofereceu-se para contar o que sabia com a condição de que Esopo desse água à cidadela de Corinto. Ele preferiu a bênção da água em vez da paz com os deuses. Foi punido por isso no inferno.
Homero conta-nos, também, que Sísifo acorrentou a Morte. Plutão não pôde suportar a visão do seu império abandonado e silencioso. Ele enviou o Deus da Guerra, que libertou a Morte das mão do seu conquistador.
Sísifo é o herói absurdo. Ele o é, tanto pelas suas paixões, quanto pela sua tortura.
O seu desdém pelos deuses, o seu ódio pela morte e a sua paixão pela vida fizeram com que ele recebesse aquele inexprimível castigo no qual todo o seu ser se esforça para executar absolutamente nada. Este é o preço que deve ser pago pelas paixões neste mundo. Nada nos é dito sobre Sísifo no inferno. Os mitos são feitos para a imaginação lhes soprar vida. Quanto a este mito, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo esforçando-se para levantar a imensa pedra, rolá-la e empurrá-la ladeira acima centenas de vezes; vê-se o rosto comprimido, a face apertada contra a pedra, o ombro que escora a massa recoberta de terra, os pés apoiando, o impulso com os braços estendidos, a segurança totalmente humana de duas mãos cobertas de terra. Ao final deste longo esforço medido pelo espaço e tempo infinitos, o objectivo é atingido. Então Sísifo observa a rocha rolar para baixo em poucos segundos, em direcção ao reino dos mortos, de onde ele terá que empurrá-la novamente em direcção ao cume. Ele desce para a planície. É durante este retorno, esta pausa, que Sísifo me interessa.
Um rosto que trabalhou tão próximo da pedra, já é a própria pedra!
Eu vejo aquele homem descendo com um passo muito medido, em direcção ao tormento que ele sabe que nunca terá fim. Aquela hora, que é como um momento de respiração, que sempre voltará assim como o seu sofrimento; é a hora da consciência. Em cada um destes momentos, quando ele deixa as alturas e gradualmente mergulha nos infernos, ele é superior ao seu destino. Ele é mais forte do que a sua pedra. Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria realmente a sua tortura se a cada passo a esperança de prosperar o sustentasse ? O operário trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e o seu destino não é menos absurdo. Mas é trágico apenas nos raros momentos em que ele toma consciência. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e rebelde, sabe a total extensão da sua miserável condição: é nisso que ele pensa durante a sua descida. A lucidez que deveria constituir a sua tortura ao mesmo tempo coroa a sua vitória. Não há destino que não possa ser superado pelo desprezo. Se desta maneira, a descida é realizada às vezes com tristeza, também pode ser realizada com alegria. Esta palavra não é exagerada. Novamente, eu imagino Sísifo retornando em direcção à sua rocha; o sofrimento estava no início. Quando as imagens da Terra vêm com muita força à memória, quando o chamamento da felicidade se torna muito insistente, acontece a melancolia aparecer no coração do homem: esta é a vitória da rocha, esta é a própria rocha.
Mas as verdades esmagadoras desaparecem quando se tornam conhecidas. A sabedoria antiga confirma o heroísmo moderno. Não se descobre o absurdo sem se ser tentado a escrever um manual sobre a felicidade.
Felicidade e absurdo são dois filhos da mesma Terra. Eles são inseparáveis. Seria um erro dizer que a felicidade nasce necessariamente do descobrimento do absurdo. O mesmo quanto ao sentimento do absurdo nascer da felicidade.
Ela ensina que tudo não foi e nem está esgotado. Ela expulsa deste mundo um deus que veio a ele com descontentamento e com uma preferência pelo sofrimento inútil. Ela faz do destino uma questão humana, que deve ser resolvida entre os homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo está contida nisto. O seu destino pertence-lhe. A sua rocha é algo semelhante ao homem absurdo quando contempla o seu tormento; silencia todos os ídolos. No universo subitamente devolvido ao seu silêncio as pequenas vozes extremamente fascinantes do mundo elevam-se. A inconsciência, os chamamentos secretos, os convites de todos os aspectos, eles são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra, e é essencial conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e os seus esforços doravante serão incessantes. Se há um destino pessoal, não há um destino superior, ou há, mas um que ele conclui que é inevitável e desprezível. Para o restante, ele reconhece-se a si mesmo como o mestre dos seus dias. No momento subtil quando o homem olha para trás na sua vida, Sísifo retornando à sua pedra, nesta modesta viragem, ele contempla aquela série de acções não relacionadas que formam o seu destino, criado por ele. Assim, convencido da origem totalmente humana de tudo o que é humano, o homem cego, ansioso para ver, que sabe que a noite não tem fim, este homem permanece em movimento. A rocha ainda está rolando.
Eu deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre encontra a sua carga novamente. Mas Sísifo ensina a mais alta honestidade, que nega os deuses e ergue rochas. Ele também conclui que está tudo bem. O universo, de agora em diante sem um mestre, não lhe parece nem estéril nem inútil. Cada átomo daquela pedra, cada lasca mineral daquela montanha repleta de noite, em si próprio forma um mundo. A própria luta em direcção às alturas é suficiente para preencher o coração de um homem.Deve-se imaginar Sísifo feliz.
Albert Camus

Actividades:
1. O mito de Sísifo retrata a nossa existência?
Justifique a sua resposta tendo em conta as afirmações do texto sobre
a relação entre a felicidade e o absurdo.
2. Podemos considerar que Sisífo é livre? Porquê?
3. Nós somos livres? Justifique exaustivamente a sua resposta.


"Nada"


Este é um filme, no mínimo, estranho.
É uma das preciosidades que nos foram proporcionadas pelo Fantasporto, pois esse filme entrou no nosso mercado cinematográfico por causa da sensação que causou no festival do nosso contentamento.
Se não fosse isso, talvez pudéssemos apreciá-lo, a horas tardias, numa qualquer emissão televisiva para encher a programação.
Também é verdade que o género não é de fácil aceitação por grandes camadas do público: é uma comédia que pertence ao género fantástico, sem os efeitos especiais que arrebatam as multidões. Os meios usados pelo realizador são muito imaginativos (a maior parte das cenas foram filmadas em estúdio, recorrendo a um cenário que mais parece uma produção teatral), o que torna o filme ainda mais surpreendente. Por exemplo, a forma como o nada nos é apresentado é, no mínimo, original e, ao mesmo tempo, muito concreta (de facto imaginar o nada é uma tarefa praticamente impossível).
Mas o que é marcante no filme é a sua história. E trata-se duma história bem contada. Ela assenta na seguinte hipótese (absurda, pelo meno menos em princípio): e se pudéssemos fazer desaparecer aquilo de que não gostarmos? Como ficaria, então, o nosso mundo?
Se gostarmos de tudo o que existe, esse poder de reduzir ao nada aquilo de que não gostássemos não traria qualquer mudanaça significativa ao nosso mundo. É claro que a maioria das pessoas considerará que é impossível gostar de tudo. Por isso talvez seja com alívio que reconhecemos, sem termos que nos esforçar muito, que não possuímos esse poder nadificante.
Pois uma coisa é não gostarmos deste ou daquele elemento da realidade, outra muito diferente é podermos fazê-lo desaparecer.





Título: Nothing.
Realizador: Vincenzo Natali.
Ano: 2003.

Trailer: